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Carta Pastoral Dom Orani - CF 18

em 18/02/2018 | 00h00min

Carta Pastoral Dom Orani - CF 18

BEM-AVENTURADOS OS QUE CONSTROEM A PAZ! (Mt 5,9)

Carta pastoral do Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist. Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro por ocasião da Quaresma e da Campanha da Fraternidade de 2018

Ah! Se eu tivesse asas como a pomba, voaria para um lugar de descanso!

Fugiria para bem longe e moraria no deserto. Porque só vejo violência e discórdia na cidade! No seu interior só há injustiça e opressão.

A iniquidade e a fraude não deixam suas praças.

(Sl 55,7-8.10b.11b.12b)


1.No início desta Quaresma, quando a Campanha da Fraternidade nos convida à superação da violência, considero meu dever, como pastor e cidadão, dirigir-me à cidade do Rio de Janeiro sobre alguns  caminhos  que  podem  ser  trilhados  nesta  direção.  Não  desejo  falar  apenas  aos católicos,  mas  a  todos  que  estão  preocupados  com  a  violência  e  buscam  soluções  para  o problema. Reconheço que a vontade de muitos pode ser a mesma do salmista, ou seja, fugir para longe, buscando paz em outros lugares (cf. Sl 55,8). Por isso, conclamo os cariocas a nos unirmos  neste  tempo  quaresmal  à  Igreja  em  todo  o  Brasil,  que  nos  convida  a  trabalhar  em favor da superação da violência, recordando que nós todos somos filhos e filhas do mesmo Deus e, por isso, irmãos e irmãs.1

2.A Quaresma é sempre um tempo de conversão e missão, de solidariedade e fraternidade. Há mais  de  cinco  décadas,  a  Campanha  da  Fraternidade  nos  propõe,  nesta  época,  temas  que convidam à conversão dos corações e à transformação da realidade. Este ano estamos diante de uma situação que agride a todos sem distinção, fazendo continuamente vítimas e deixando feridas que custam a sarar.

3.Acolho o texto-base da CF 2018, desejando, nesta nossa carta, destacar alguns aspectos que percebo serem importantes e mesmo urgentes para o Rio de Janeiro. Expresso aqui um pouco do que tenho visto e sentido nos últimos anos, tanto em nossa querida cidade como também em outros lugares por onde minha missão me tem conduzido. Não são poucas as vezes  em que,  ouvindo  pessoas  ou  escutando  minha  consciência  e  meu  coração,  percebo  ecoar  o lamento do salmista quando, perplexo, afirma olhar para todos os lados e apenas enxergar a violência em suas variadas formas. Assim é que, diante da aguda e crescente violência, optei por  me  manifestar,  através  desta  Carta  Pastoral,  de  modo  mais  direto  do  que  nos  anos anteriores.

4.Todos  nos  sentimos  solidários  com  o  salmista  que,  inspirado  por  Deus,  expressa  o  que  se passa no coração de toda pessoa que vive agudas situações de violência. Nós nos perguntamos o que fazer diante da violência que nos cerca, que cresce cada dia mais, assumindo formas e níveis que não imaginávamos, e para a qual não conseguimos enxergar soluções.

5.Na busca de caminhos para a superação da violência, volto-me para aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida – Jesus Cristo (cf. Jo 14,6), em quem se encontra a bem-aventurança da paz. Ao desejo de fuga, expresso no lamento do salmista, o Senhor Jesus apresenta o mandato missionário para construir a paz. Não se trata de apenas constatar a presença da violência e a ausência  de  paz,  mas  de  trabalhar  efetivamente  para  que  a  violência  seja  enfrentada  e superada em suas causas e consequências.


Uma violência sem limites?

6.Uma  das  razões  pelas  quais  os  bispos  do  Brasil  aprovaram  este  tema  para  a  Campanha  da Fraternidade de 2018 foi o aumento gritante dos índices e das formas de violência por todo o país. De fato, a violência é um mal que está se multiplicando incessantemente, sob inúmeras formas,  e  penetra  nos  mais  diversos  ambientes,  fazendo  um  número  cada  vez  maior  de vítimas.  Ela  se  manifesta  na  cidade  e  no  campo,  atinge  crianças,  jovens,  adultos  e  idosos, chega às famílias, aos trabalhadores e aos estudantes, afeta os sadios e os enfermos.

7.O texto-base da Campanha da Fraternidade nos aponta inúmeras formas de violência (16-51), alertando-nos para o fato de que ela já atingiu nossas consciências, nosso modo de pensar e de sentir  a  realidade  e  a  ela  reagir  (45-51).  As  correntes  da  violência  já  não  amarram  apenas nossos  braços  ou  nossas  pernas.  Elas  tomaram  conta  de  nossa  mente,  fazendo  com  que acreditemos  que  somente  com  mais  violência  é  que  resolveremos  as  grandes  questões  que marcam o nosso tempo. Mesmo conscientes de que não se apaga incêndio com combustível, como se costuma dizer, estamos de tal modo inseridos num mundo de aguda violência que já não percebemos que as reações concretizadas ou desejadas são também soluções de violência. A realidade dos nossos dias está nos mostrando aquilo que já não conseguimos perceber: não estamos  enfrentando  a  violência,  mas  contribuindo  para  que  ela  aumente  e  se  perpetue.  Se alguém  nos  atinge,  queremos  fazer  o  mesmo.  Já  não  acreditamos  na  recuperação  de  quem cometeu algum delito. Somos uma sociedade que, direta ou indiretamente, acaba acreditando que  somente  a  morte  é  a  solução  para  a  violência.  Esquecemo-nos,  porém,  de  que  assim pensando   e   agindo,   tornamo-nos   tão   violentos   quanto   aqueles   que   acusamos   deste comportamento.

8.Esta é a razão pela qual a Campanha da Fraternidade deste ano precisa ter uma abrangência missionária que ultrapasse em muito os limites de nossas igrejas, chegando a todas as pessoas, a quem crê e a quem não crê, aos que buscam a Deus por outros caminhos que não o caminho cristão,  a  quem  sofre  e  a  quem  pratica  a  violência,  aos  que  mais  diretamente  têm  a responsabilidade  de  enfrentar  esta  questão,  aos  que,  nas  atividades  educativas,  contribuem para  a  formação  das  consciências  de  crianças,  jovens  e  adolescentes.  Todos  os  anos,  a Campanha  da  Fraternidade  não  quer  ficar  restrita  ao  interior  das  igrejas.  O  mesmo  deve acontecer este ano, pois a violência não mede idade, condição econômica ou social, religião ou qualquer outra situação. A violência atinge a todos.


Não é apenas uma questão de números

9.É verdade que uma das razões para a escolha deste tema foi o assustador aumento dos índices de  violência.  Independentemente  do  modo  de  classificar  e  contabilizar  a  violência  e  suas vítimas, o resultado é o mesmo: crescimento a níveis insuportáveis. No entanto, a partir do Evangelho,  do  amor  de  Deus  por  todas  e  cada  uma  das  criaturas,  devemos  recordar  que  a questão  da  violência  não  pode  estar  ligada  apenas  aos  altos  índices  de  ocorrência.  Bastaria uma única vítima sobre a terra para nos sentirmos incomodados e iniciarmos nosso trabalho de  superação.  Se  nos  ativermos  apenas  ao  número  alto  de  vítimas,  corremos  o  risco  de indiretamente dizermos que existem índices aceitáveis, que alguns seres humanos podem ser vitimados e que o importante é que não aumente o seu número.

10.A Campanha da Fraternidade, no entanto, nos indaga se existe algum número humanamente aceitável para a violência e suas vítimas que não seja o número zero. A superação da violência não é uma questão de números. É uma questão de princípios. É uma questão de humanidade e de  reconhecimento  de  que  somos  todos  irmãos  e  que  daremos  contas  ao  Criador  pela fraternidade não buscada, não vivida e, pior, destruída. Os números, isto é, os altos índices de violência  nos  indicam  que  estamos  chegando  tarde  no  enfrentamento  da  questão.  O  Santo Padre Francisco nos adverte sobre essa realidade, ao afirmar que “o tempo gasto no ódio e na vingança  é  muito...  não  queremos  que  qualquer  tipo  de  violência  restrinja  ou  suprima  nem mais uma vida”. 2

11.Interessante  observar  que,  em  1983,  a  Igreja  no  Brasil  já  se  preocupava  com  a  violência, escolhendo,  por  isso,  o  lema  “Fraternidade  sim.  Violência  não”  para  a  Campanha  da Fraternidade daquele ano. São já 35 anos e o retorno ao tema mostra que é necessário agir com maior vigor, chegando à Páscoa com o coração purificado das algemas da violência. Se a Campanha da Fraternidade não deve terminar no Domingo da Ressurreição, este tempo até lá deve  ser  dedicado  à  revisão  de  nosso  pensar  e  agir,  à  verificação  do  quanto  estamos contaminados pela violência, o quanto o pecado tomou conta de nós, o quanto acreditamos que somente pela violência enfrentaremos a violência.


Um tempo para agir

12.O enfrentamento da violência é feito através de vários caminhos. O primeiro deles é a tomada de consciência de que a violência não se encontra apenas fora de nós. Ela já tomou conta de cada   pessoa,   à   semelhança   de   alguém   que,   vivendo   num   ambiente   poluído,   inala continuamente a fumaça até o dia em que, assustada, se pergunta porque está doente se nunca produziu poluição. O segundo caminho é o da denúncia de todas as formas de violência, suas causas  e  consequências.  Não  há  como  calar.  Não  há  como  manter-se  afastado  das  vítimas, consolando-se com o fato de a violência não nos ter atingido. Se um irmão sofre, todos sofrem com ele (cf. 1 Cor 12,26), pois nós todos, lembra-nos o lema da Campanha da Fraternidade deste ano, somos irmãos.

13.A  novidade  deste  ano  consiste  na  urgência  em  ultrapassar  as  atitudes  apenas  de  denúncia, chegando  a  atitudes,  como  o  próprio  tema  indica,  de  superação.  Quando  identificamos  e denunciamos  uma   situação  de  violência,   é  necessário  que   imediatamente  encontremos caminhos  para  a  superação,  para  que  as  causas  não  se  repitam  e  as  consequências  sejam sanadas ou, pelo menos, amenizadas. Se nosso mundo cria e multiplica a violência, devemos ser ainda mais unidos e criativos para encontrar caminhos de superação. Esta é a finalidade da Campanha  da  Fraternidade  deste  ano.  Este  é  o  motivo  pelo  qual  me  preocupo  tanto  ao percorrer  nossa  cidade e me encontrar  com inúmeras vítimas da violência. Esta,  enfim, é a razão pela qual resolvi escrever esta Carta Pastoral. Confiante na graça de Deus, entrego-a, agradecendo pela leitura e a colocação em prática das suas propostas.


A autêntica origem da paz 

“Deixo-vos a paz. A minha paz vos dou.

Eu não a dou como o mundo a dá.” ( Jo 14,27) 

14.A paz, afirma o Papa Francisco, “é uma aspiração profunda de todas as pessoas e de todos os povos, sobretudo de quantos padecem mais duramente pela sua falta”. 3  Sim, o sonho de paz é um sonho humano porque, antes, é um sonho divino. A paz é dom de Deus 4. É presente do céu, entoado pelos anjos na gruta de Belém (cf. Lc 2,14) e derramado pelo Ressuscitado (cf. Jo 20,21). Estar com Jesus Cristo é estar em paz, acreditar na paz, buscar a paz e construir a paz. É por isso que o desejo de paz está presente em todo ser humano, seja ele cristão ou não. Todo ser humano foi criado pelo Deus da Paz para a vida na paz.

15.Rejeitá-la e abrir espaço para a violência consiste numa forte agressão ao que temos de mais humano dentro de nós, independentemente de nossas crenças religiosas. Não se trata aqui de um assunto restrito aos religiosos num mundo que se afirma cada vez mais laico. A laicidade é um valor na medida em que respeita as diferenças e contribui para que as diversas formas de compreender  a  vida  estejam  em  comunhão.  Ela  não  pode,  entretanto,  ser  usada  como argumento  para  impedir  que  se  trabalhe  pela  paz.  Quando  isso  acontece,  até  mesmo  a laicidade se torna um instrumento de violência.

16.Neste  tempo  quaresmal,  em  que  nos  voltamos  com  maior  intensidade  para  os  relatos  da paixão,  somos  convidados  a  perceber  a  paz  como  dom  do  Cristo  Senhor  (cf.  Jo  14,27). Somos, no entanto, igualmente convidados a perceber que não se trata da paz “como o mundo a  dá”,  mas  a  paz  conforme  Jesus  Cristo  a  deu.  Quem  verdadeiramente  acredita  na  paz  não pode aceitar que a violência seja caminho para a superação da violência. Como extinguir o fogo com o próprio fogo? Num mundo que nos manda ser violentos em nome da preservação e da liberdade, temos o dever de dizer e mostrar com inequívocas atitudes que este caminho só nos leva à destruição. O verdadeiro caminho para a paz não é o caminho que mata, que extermina o outro, mas é o caminho que restaura, reconstrói, reabilita e perdoa. Jesus Cristo, o Senhor da Paz, em lugar de matar,  entregou-se nas mãos dos violentos, clamando ao Pai o perdão por aqueles que não sabiam o que estavam fazendo (cf. Lc 23,34). E esta não é uma atitude superada. É, ao contrário, um desafio a ser compreendido e traduzido para os nossos dias.

17.Temos hoje tantos recursos! Vivemos numa época em que a tecnologia nos transformou, mais do que em outras épocas, numa única e grande família. Podemos saber do que acontece em qualquer parte do mundo, a qualquer hora. Podemos nos comunicar com quem desejarmos no momento em que desejarmos. Podemos divulgar, explicar, apresentar. Por que, então, ficamos com  a  forte  impressão  de  que  se  divulga  muito  mais  a  violência?  Por  que,  ao  abrir  nossos instrumentos de comunicação, tão atualizados, ainda encontramos propostas e mais propostas de desrespeito ao ser humano, de aproveitamento das pessoas, de apologia à destruição desde a vida que está por nascer, de comércio satânico de substâncias que geram dependência para garantir o  lucro  de quem as vende ou  de  ensinamentos sobre o uso  de  armas  e técnicas  de agressão? Não seria o caso de ocuparmos também este espaço com muito mais exemplos de superação  da  violência,  de  valorização  da  pessoa  e  de  respeito  à  natureza?  Em  termos

18.Assim  como  são  altos os  índices  de  violência,  são  igualmente  grandes  as  possibilidades  de ação para que a violência seja superada. Podemos ficar com a impressão de que, diante da tão diversificada violência, podemos fazer pouco. Isto, no entanto, é uma grave pedra de tropeço. Precisamos  evitá-la,  considerando  que  as  chances  de  superação  são  iguais  ou  até  mesmo maiores que os índices e as formas da violência. Há muito para ser feito. “O campo é imenso, dizia Jesus, mas os operários são poucos” (cf. Lc 10,2). Este pensamento também se aplica à superação da violência. É por isso que precisamos vencer o imobilismo, seja o que decorre do medo, seja o que infelizmente decorre da omissão egoísta de quem só pensa em si mesmo. O domínio sobre o medo e a omissão egoísta exigem confiança no Cristo Senhor e conversão à sua  palavra,  pois  Ele  venceu  a  morte,  por  amor  aos  pecadores.  Não  existe,  portanto, mensagem mais adequada à Quaresma e à preparação à Páscoa. Se nada fizermos em relação à violência, com suas causas e consequências, daremos contas ao Deus da Justiça e da Paz.


A violência e sua superação na Sagrada Escritura

“Não invejes o homem violento e não escolhas um de seus caminhos” (Pr 3,31)

19.Olhemos, portanto, como a Sagrada Escritura lida com essa questão. Permitam-me apresentar alguns  exemplos,  dentre  os  muitos  que  podem  ser  colhidos  dos  seus  textos.  Lembro  que  é necessidade  nossa  estabelecer  contato  vivo  e  frequente  com  a  Sagrada  Escritura,  dela aprendendo  a  ler  a  realidade  de  nossos  dias,  pois  a  graça  de  Deus,  sua  manifestação  e  sua vitória sobre o pecado não são questões de tempos antigos. São desafios constantes e, por isso mesmo, muito atuais, bastante propícios para os nossos dias.

20.De  modo  bastante  resumido,  a  Sagrada  Escritura  fala  de  paz  e  apresenta  a  violência  como consequência do pecado. É por isso que entendemos tão bem a ligação entre a Quaresma e a Campanha da Fraternidade. De fato, a Sagrada Escritura encontra-se repleta de exemplos de violência.  Todos  eles  são  vistos  a  partir  do  primeiro  ato  de  desobediência  ao  mandamento dado por Deus. A prepotência de Adão e Eva os levou a desejarem o que era próprio de Deus, não se reconhecendo como criaturas, vocacionadas ao convívio e, portanto, à fraternidade e à paz. Esta prepotência não permitiu compreenderem que, considerando-se deuses, teriam como resultado a maior de todas as violências que é a morte (cf. Gn 2,17). Quando desobedeceram, mesmo tendo sido avisados, abriram as portas da violência e da morte.

21.A primeira morte narrada é consequência direta da inveja que levou Caim, um agricultor, a matar com violência o seu irmão Abel, um pastor (cf. Gn 4,1-16). Por detrás desse fratricídio encontra-se o conflito entre duas culturas muito antigas: a agricultura, representada por Caim, e a pastorícia, representada por Abel. Um desequilíbrio social! Os desequilíbrios sociais são geradores de violência e de morte.

22.O  crime  de  Caim,  assassinato  do  irmão,  desencadeia  a  violência  que  alcança  enormes proporções 5. Este relato surgiu num tempo em que vigorava uma lei, conhecida como “lei de Lamec”, cuja base era a vingança sem limites, num processo de aguda e infindável violência. O  único  freio  que  encontramos  naquele  período  foi  a  lei  do  talião,  que  estabelece  a equiparação entre o delito e o castigo. A expressão mais conhecida é aquela que Jesus cita e corrige no Sermão da Montanha: “olho por olho, dente por dente” (cf. Mt 5,38). Para aquela época, a lei do talião pode ser considerada como um avanço sobre o direito à vingança (cf. Ex 21,24). Entretanto, com as observações de Jesus sobre o perdão como regra de ouro (cf. Mt 5,39-42), regra a ser seguida  setenta vezes sete vezes (cf. Mt 18,21-22), isto é, infinitamente, estamos diante de um outro modo de lidar com a violência.

23.Deus  não  aceita  a  violência.  Ele  é  paz  e  esperança.  Por  isso,  já  nas  primeiras  páginas  da Bíblia, encontramos sua resposta à crescente violência humana através das águas do dilúvio. À primeira vista, estamos ainda diante de uma resposta violenta, pois se trata de exterminar a humanidade, tamanho era o seu pecado. Quando, porém, prestamos atenção ao texto, vemos que alguns são salvos: Noé, sua mulher, filhos e noras, e os animais levados para dentro da arca. Deus mantém seu amor salvífico e sua esperança no ser humano. A narrativa do dilúvio evoca a iniciativa de Deus em recriar a humanidade. Busca quem seja justo, isto é, quem não caiu  nas  armadilhas  do  pecado  e  da  violência.  Encontra  Noé  e  sua  família.  Eles  são descendentes de Set, o filho que nasceu de Eva após o assassinato de Abel (cf. Gn 4,25-26). Set  e  Noé  são  como  uma  iniciativa  positiva  de  Deus  em  relação  à  humanidade  a  partir  da promessa contida em Gn 3,15. A partir daí, a Escritura narra a história da luta entre essas duas descendências, a da serpente e a da mulher, uma  luta interna do ser humano para aderir ao bem e se afastar do mal, luta que deve superar a violência instalada no íntimo do ser humano pelo exercício da fraternidade.

24.O fratricídio, exemplificado em Caim que mata seu irmão Abel, revela a falta de fraternidade que se repete inúmeras vezes na Sagrada Escritura. Por exemplo, na história de José e seus irmãos marcados por ciúme e inveja (cf. Gn 37,20), na ambição de Abimelec pelo poder, que o levou a matar todos os seus irmãos (cf. Jz 9,24). Gn 34,1-24 menciona a violação feita a uma jovem, Dina, filha de Jacó, que terminou com o assassinato do violador e da sua família pelas mãos de Simeão e Levi (cf. Gn 34,25-31).

25.A  discórdia  desencadeada  entre  Esaú  e  Jacó,  por  causa  da  bênção,  não  terminou  em fratricídio,  mas  foi  superada  pela  confiança  de  Jacó  em  Deus  e  a  sua  postura  humilde assumida diante de Esaú que, no lugar da vingança, preferiu a reconciliação (cf. Gn 33,1-11). José,  filho  de  Jacó,  sofreu  violência  da  parte  de  seus  irmãos,  que  quase  cometeram  um fratricídio (cf. Gn 37,20.26-26), mas, quando mudou de status e teve a grande oportunidade de se  vingar,  ofereceu-lhes  o  perdão  (cf.  Gn  45,1-15).  Nesses  dois  casos,  a  fraternidade prevaleceu.  No  antigo  Israel,  cidades  refúgio  foram  estabelecidas,  entre  os  levitas,  para proteger  quem  cometesse  algum  crime  involuntário  (cf.  Nm  35;  Dt  4,41-43).  Este  foi  um passo a mais sobre a lei do talião.

26.Nestes e noutros exemplos, podemos ver  que  Deus rejeita quem ama  a violência (Sl  11,5).

Esta não é outra realidade que a negação da fraternidade, isto é, do laço mais forte que  une todos os que pertencem ao gênero humano. A Sagrada Escritura nos ensina que todos os seres humanos  são  irmãos  (cf.  Gn  1,28).  Quando  a  fraternidade  é  violada,  a  violência  aflora  e assume  diferentes  facetas  e  formas  que  abalam  as  relações  sociais.  O  pecado  do  coração humano atinge as relações sociais. É por isso que o profeta Amós, por exemplo, reprova os abastados do seu tempo  que geravam violência  através da forma como  enriqueciam,  isto é, oprimindo e explorando os mais pobres (cf. Am 3,10). Com isso, aumentavam o domínio da violência (cf. Am 6,1-3) 6. Caso típico foi a desapropriação da vinha de Nabot, lapidado por falsas testemunhas  e sem ter, sequer, o direito  de se defender (cf. 1Rs 21,8-16). Em vários escritos, chamados de sapienciais também encontramos os mais fracos, pequenos, humildes e indefesos como as maiores vítimas da violência (cf. Sl 73,6; 74,19-21) 7.

“Senhor, até quando, clamarei e não escutarás; gritarei: ‘violência’, e não salvarás” (Hab 1,2)

27.A falsa acusação e o juízo injusto acompanham a violência que faz o inocente sofrer nas mãos dos injustos (cf. Sl 7,17; 25,19). Este sofrimento  aparece  acompanhado pela ação de juízes iníquos  (cf.  Sl  58,2-3).  Quem  não  encontra  proteção  no  tribunal  não  lhe  resta  senão  gritar, pedindo ajuda e apelando para Deus, porque o oprimido conhece o direito que lhe está sendo negado (cf. Jr 20,8; Jó 19,7). Onde se escuta o grito: “violência!”, se verifica a opressão e a injustiça (cf. Jr 6,7), pois o direito e as leis foram enfraquecidos (cf. Hab 1,2-3). O tempo da justiça e da paz só chegará quando não se ouvir mais esse grito de violência (cf. Is 60,17-18). Só a soberania de Deus é capaz de triunfar sobre a violência humana (cf. Hab 1,3) e, por Ele, as vítimas gritam por socorro (cf. 2Sm 22,3.49; Sl 18,2.49).


Em Jesus Cristo, perdão e fraternidade superam a violência

“Ouvistes o que foi dito...

Eu, porém, vos digo...” (cf. Mt 5,21-48)

28.A  mesma  violência,  fruto  do  pecado,  também  está  presente  no  Novo  Testamento.  Sua superação,  contudo,  experimenta  um  salto  até  então  não  observado.  Jesus  Cristo,  a  paz  de Deus  caminhando  sobre  a  terra,  reverteu,  com  sua  vida,  paixão,  morte  e  ressurreição,  o processo de vingança e  castigo, trazendo o perdão e a reconciliação como caminhos para a paz. Nos evangelhos, Ele manifesta messianicamente o caminho da fraternidade ao assumir Is

61,1-2 como  seu  projeto  de  vida  ministerial  (cf.  Lc  4,18-19).  A  violência  busca  obstruir  a presença e a ação salvífica de Deus,  enquanto o Reino afirma-se pela presença do amor de Deus revelado em Jesus Cristo. Fazem parte do Reino de Deus todos os que experimentam a força desse amor que consiste na renúncia da vingança para praticar o bem em prol da paz, um amor onde o bem de todos promove o bem de cada um.

29.Se pela violência o ser humano, desde as origens, aprendeu a ser conivente com o mal, pela fraternidade universal, redimida em Jesus Cristo, o ser humano pode reorientar sua vida para a superação de todas as formas de transgressão e violências desencadeadas pelo pecado. Pelo mistério da encarnação, o Filho de Deus se fez irmão de cada ser humano e, nele, tornamo-nos irmãos e irmãs. Inaugura-se um parentesco acima da carne e do sangue, um vínculo que se reconhece na escuta obediente da sua palavra, uma fraternidade fundada e regida pelo  amor (agápe)  que  estabelece  uma  nova  ordem  entre  os  seres  humanos.  O  amor  exigido  entre  os irmãos é o mesmo que levou Jesus Cristo à sua  entrega total, pois esse  amor vai  além dos vínculos  carnais  e  espirituais,  e  leva  ao  reconhecimento  de  Jesus  Cristo  no  próximo,  em particular  naquele  que  sofre  (cf.  Mt  25,31-46).  Serve  de  forte  exemplo  a  parábola  do  bom samaritano, onde a fraternidade falou mais forte que a pureza gerada pelo cumprimento da lei (cf. Lc 10,25-37) e a inimizade entre os judeus e samaritanos (cf Jo 4,9).

30.Por causa da centralidade do Reino de Deus, Jesus Cristo assume uma forte crítica a todas as formas de violência. Isso acontece, por exemplo, quando Ele liberta um endemoninhado (cf. Mc  9,26),  quando  denuncia  a  violência  praticada  por  escribas  e  fariseus  que  abusavam  do poder  e  julgavam  que  podiam  ficar  impunes  (cf.  Mt  23,13-35)  ou  quando  liberta  pessoas oprimidas  por  enfermidades  (cf.  Lc  13,10-17).  Jesus,  no  entanto,  dá  um  passo  a  mais  no enfrentamento  da  violência.  Ele  vai  até  a  mentalidade  existente  naquela  época,  rompe  com essa mentalidade e sua fundamentação. Jesus é o Senhor do sábado (cf. Mc 2,27-28), no qual se  deve  fazer  o  bem  (cf.  Mc  3,1-6).  Exige  amor  incondicional,  maior  até  que  os  laços  de sangue e de família (cf. Lc 9,60). Revela que a integridade física não é superior às exigências da conversão (cf. Mt 5,29-30). Chama de hipócritas e sepulcros caiados os que se apropriaram das leis em benefício próprio (cf. Mt 23,13-36).

31.A vida de Jesus torna-se eloquente convite aos discípulos para que aprendam a perdoar e a usar  de  misericórdia,  em  particular  para  com  os  inimigos.  Jesus  convoca  os  discípulos  a demonstrarem a força da fraternidade (cf. Lc 6,27-38; Mt 18,21-22) e do perdão que invalida a  violência:  “Pai,  perdoa-lhes,  não  sabem  o  que  fazem”  (Lc  23,34).  Assim,  a  atitude  que revela  o  verdadeiro  seguimento  é  o  serviço,  “porque  o  Filho  do  Homem não  veio  para  ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos” (Mc 10,41-45). Então, ouvir, acolher  e  praticar  esses  ensinamentos  são  as  ações  que  justificam  a  proclamação:  “Senhor! Senhor!”,   porque   são   ações   que   demonstram   a   fidelidade   a   Jesus   Cristo   e   aos   seus mandamentos (cf. Mt 7,21; Lc 6,46).

“Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal pelo bem” (Rm 12,21)

32.Em todas essas ações, Jesus realiza, em sua pessoa, as expectativas anunciadas na figura do Servo Sofredor 8, pois, ao se confiar totalmente a Deus, triunfa sobre a violência, aceitando sofrer voluntariamente, como irmão de todos os seres humanos. Jesus Cristo é o novo Abel da nova  humanidade  redimida  pelo  seu  sangue  amorosamente  derramado.  Desse  modo,  o caminho  para  a  superação  da  violência  é  inequivocamente  indicado  por  Jesus.  Ele  indica  a fraternidade  entre  os  seres  humanos,  com  o  detalhe  de  que  esta  deve  ser  concretizada  do mesmo  modo  como  Ele  fez:  “como  eu  vos  tenho  amado,  amai-vos  uns  aos  outros”  (cf.  Jo13,34). A paixão e morte de Jesus foi a entrega voluntária do Irmão entre irmãos para que a justiça do amor violado pelo pecado devolvesse a paz à humanidade e os meios para superar a violência. A violência se enfrenta através do amor-doação.


A superação da violência em nossos dias

“Disse-lhes Jesus outra vez: A paz seja convosco.

Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio.” (Jo 20,21)

33.Motivados pela graça de Deus e impulsionados pela Sagrada Escritura, somos convidados a olhar a realidade de nossos dias, buscando não apenas enxergar a violência em suas variadas formas, mas, acima de tudo, discernir caminhos para a superação. A violência é uma realidade incontestável. Suas manifestações e suas vítimas são incontáveis. Não podemos, permitam-me repetir,  deixar  que  nossa  inércia  atinja  os  mesmos  níveis.  Diante  da  violência,  não  existe neutralidade.  Ou  agimos  em  vista  de  sua  superação  ou  contribuímos  para  que  ela  aumente ainda mais.

34.O Evangelho nos ensina que a base para qualquer ação é a conversão pessoal. É preciso olhar para dentro de nós mesmos e reconhecer que a possibilidade e, lamentavelmente, a realidade de violência  existem em nós. Sem esse reconhecimento, corremos o  risco de cair na ilusão prepotente de nos acharmos perfeitos e, com isso, apenas culparmos os outros, lavando nossas mãos no desejo de limpar nossa consciência. A paixão de Jesus nos indica um exemplo bem famoso dessa atitude (cf. Mt 27,24). Esta é a razão pela qual não podemos perder a chance que a Quaresma nos oferece para a conversão. Este, diz S. Paulo, é o tempo favorável (cf. 2Cor 6,2). Não o desperdicemos!

35.É  por  isso  que  a  superação  da  violência  começa  pela  vivência  da  Quaresma:  rezar  mais, refletir mais, libertar-se  do desnecessário, fazer jejum e abstinência, confessar-se, participar da Eucaristia. São, como se pode ver, orientações antigas, porém, não superadas. É importante que  não  caiamos  na  tentação  de  achar  que  algo  antigo  significa  também  ultrapassado.  Se assim  for,  abandonaremos  os  idosos,  poderemos  jogar  fora  a  Bíblia  e  destruir  o  mundo exatamente porque são antigos. Sabemos, porém, que este não é o caminho da vida e da paz. Por  isso,  peço  o  empenho  de  todos  para  participarem  ativamente  do  que  as  comunidades oferecem  durante  a  Quaresma  e  a  Campanha  da  Fraternidade.  Nossa  Arquidiocese  oferece material para reflexão em pequenos grupos, realização da via-sacra, especialmente nas ruas, em atitude missionária, e da hora santa. O importante é aproveitar tudo isso e trabalhar pela conversão pessoal e pela busca de caminhos para a superação da violência.

36.De  modo  especial,  é  necessário  rever  a  vida  a  partir  da  ótica  da  paz.  O  texto-base  da Campanha    da    Fraternidade    nos    adverte    que    “ninguém    pode    eximir-se    de    suas responsabilidades, imaginando que a violência sempre está no outro. É preciso que cada um se pergunte: “O que tenho feito para ajudar a construir uma cultura de paz?” (223). Em outras palavras,  cada  um  de  nós  deve  examinar  profundamente  sua  consciência  e  verificar  se  tem sido  pessoa  de  diálogo,  de  escuta  e  de  atenção  ao  próximo.  Se  tem  conseguido  superar  os conflitos  através  do  perdão,  da  reconciliação  e  da  compreensão,  colocando-se  no  lugar  dos outros  e buscando  ver  as  outras  pessoas  não  como  competidoras  ou  mesmo  inimigas,  mas, insiste o lema da Campanha da Fraternidade, como irmãos e irmãs.


A fraternidade supera a violência

“Como é bom e agradável que vivamos unidos, como se todos fossem irmãos!” (Sl 133,1) 

37.Um   segundo   caminho   para   a   superação   da   violência   consiste   no   fortalecer   dos relacionamentos e isso acontece através do efetivo convívio em família, em comunidade e nos diversos  espaços  onde  o  encontro  entre  as  pessoas  adquire  valor  maior  do  que  outras finalidades para estarem juntas. No convívio  fraterno, conhecemos  as pessoas de um modo diferente  daquele  que  nos  é  passado  pelos  mecanismos  geradores  de  violência.  Todos  nós possuímos valores e limites. A violência tende a nos fazer enxergar somente os limites. Por sua  vez,  o  convívio  nos  leva  a  enxergar  também  os  valores.  Por  isso  é  tão  importante fortalecer  em  especial  a  família,  ela  que  tem  sido  alvo  de  tantos  ataques,  agressões  e desvalorizações.  Nela  aprendemos  a  reciprocidade.  Nela,  aprendemos  a  dar  e  receber,  a contemporizar, a perdoar e ser perdoado, a acolher e ser acolhido, a corrigir e ser corrigido. Por isso, é preciso “destacar a importância social da família, sonhada por Deus como o fruto do  amor  dos  esposos,  o  espaço  onde  se  aprende  a  conviver  na  diferença  e  a  pertencer  aos outros”.  9.  Trabalhar  pela  família  é,  portanto,  um  caminho  sólido  para  a  superação  da violência e a construção da cultura da paz.

38.Desejo  do  fundo  do  coração  que  as  famílias  se  reúnam  nesta  Quaresma,  indagando-se  se efetivamente  são  escolas  de  relacionamentos,  humanização  e  fraternidade.  Peço  que  cada paróquia,  comunidade,  movimento  e  associação  valorizem  a  família  e  encontrem  caminhos para a ação pastoral com as famílias, respeitadas, por certo, as características de cada local. Lembro que, em agosto deste ano, na Irlanda, acontecerá o 9º Encontro Mundial das Famílias, com o lema “O Evangelho da Família: alegria para o mundo”. Em 1997, com a presença do Papa  João  Paulo  II,  o  Rio  de  Janeiro  sediou  este  encontro.  Temos,  portanto,  um  grande compromisso   com   a   defesa   e   a   promoção   da   família.10    Não   compreendo   como   uma comunidade não tenha alguma ação pastoral junto às famílias, por menor e mais simples que essa ação venha a ser.

39.Em  torno  da  importância  dos  relacionamentos,  volto-me  ao  nº  182   do  texto-base  da Campanha da Fraternidade para indicar outro caminho para a superação da violência. Além da família, é preciso abrir inúmeros espaços aos relacionamentos, ao convívio e à reciprocidade. A CF 2018, recordando S. João XXIII, em sua encíclica sobre a paz, afirma que “a todos os homens  de  boa  vontade  incumbe  a  imensa  tarefa  de  restaurar  as  relações  de  convivência humana  na  base  da  verdade,  justiça,  amor  e  liberdade:  as  relações  das  pessoas  entre  si,  as relações das pessoas com as suas respectivas comunidades políticas, e as dessas comunidades entre  si,  bem  como  o  relacionamento  de  pessoas,  famílias,  organismos  intermédios  e comunidades  políticas  com  a  comunidade  mundial”.  Como  é  simples  fazer  isso!  Pena  que alguns entraves, originários da violência, atuem tão fortemente entre nós.

40.Dentre  esses  entraves,  presentes  no  coração  humano,  mas  vencidos  pelos  relacionamentos fraternos e gratuitos, desejo destacar três que muito afetam o mundo de hoje. Refiro-me ao preconceito,  à  intolerância  e  à  discriminação.  Reconheço  que  estas  são  palavras  muito utilizadas em nossos dias, algumas vezes para denunciar e superar manifestações da violência, outras vezes, infelizmente, para desgastar o tema, e ainda outras, apenas para estar atualizado com a terminologia. Importa não esquecer que estes três entraves destroem a fraternidade  e impedem que nos vejamos como irmãos e irmãs, ainda que trilhando caminhos diferentes. Por certo,  não  se  trata  aqui  de,  em  nome  da  tolerância,  compactuar  com  o  que  gera  violência, aumentando   ainda   mais   os   níveis   de   pecado   no   mundo.   Compreender   não   significa compactuar, aceitar não implica concordar. É de longa data a sabedoria que orienta separar o pecado do pecador. Vencer o preconceito, a intolerância e a discriminação significa aprender a  fazer  esta  separação,  a  olhar  a  pessoa  humana,  ver  nela  um  irmão  ou  irmã,  estabelecer relacionamentos  fraternos,  ajudá-la  a  superar  seus  limites  e  aprender  com  ela  a  superar  os próprios. Nosso tempo necessita recuperar o autêntico sentido de fraternidade e compreensão.


O anúncio de Jesus Cristo como condição de paz

"Pus-me então a considerar todas as opressões que se exercem debaixo do sol.

Eis aqui as lágrimas dos oprimidos e não há ninguém para consolá-los. Seus opressores fazem-lhes violência e não há ninguém para os consolar." (Eclesiastes 4, 1)

41.Na  medida  em  que  tolerar  não  significa  omitir,  ao  aumento  no  índice  da  violência  e  no número das vítimas deve corresponder o incremento na atividade evangelizadora. Como bem sabemos, existe enorme diferença entre apresentar Jesus Cristo e impor Jesus Cristo. Sob o medo da imposição e com o louvável argumento do respeito, algumas pessoas acreditam que nem se deva mais falar de Jesus Cristo, de apresentar sua pessoa e sua mensagem. Grande, portanto, é o risco de uma atitude que leve até o extremo da omissão, ainda que sob a melhor das  intenções.  Nunca  poderemos  deixar  de  anunciar  Jesus  Cristo  e  o  Reino  de  Deus.  Este mandato está na origem e na identidade da Igreja. Transformam-se os tempos e os modos de evangelizar, mas a evangelização deve sempre acontecer.

42.Por isso, considero importantes todas as iniciativas missionárias que têm sido realizadas por paróquias, movimentos e novas comunidades para que o Evangelho chegue a mais pessoas e grupos.  Alegro-me  quando  constato  as  visitas  a  residências,  locais  de  trabalho,  hospitais, escolas e presídios. Gostaria de poder estar em cada celebração que acontece nas praças e nas ruas, com a disponibilidade de confissões onde as pessoas estão, por onde elas passam. Na impossibilidade física de sempre estar presente, uno-me na oração, desejando que continuem, que  não  se  deixem  levar  pelo  desânimo  quando  encontram  dificuldades.  Estes  momentos missionários  transmitem  forte  esperança  a  pessoas  que  não  conseguiriam  ser  acolhidas  e escutadas se não fosse ali. Mostram que as ruas de nossa cidade não são apenas lugares de violência e desrespeito. São também lugares de fraternidade e fé. Testemunham que nem tudo nessa vida necessita possuir valor monetário para ser reconhecido. O acolhimento gratuito faz com  que  muitas  pessoas,  marcadas  pelas  dores,  vitimadas  pela  violência,  possam  exclamar como Isabel o fez ao receber a visita de Maria: “como é possível que a Mãe do meu Senhor me venha visitar?” (cf. Lc 1,39-44). Conhecer o Evangelho e ter contato com as comunidades de fé são caminhos para a superação da violência.

 

Corações que escutam

"Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei”. (Mt 11, 28) 

43.Num mundo, portanto, que não estimula tanto os encontros pessoais, diante da experiência de solidão e violência, como é bom ter alguém que nos acolha e escute! Fico igualmente feliz quando vejo surgir em vários lugares atitudes e até mesmo serviços de escuta. São serviços espontâneos, decorrentes da Fé, consequência de quem sabe a importância de ser ouvido, de poder  encontrar  quem,  de  modo  gratuito  e  generoso,  acolhe,  guarda  e  reza.  Deus  abençoe essas pessoas que abriram seus corações a este sinal do Espírito Santo. Que amadureçam cada vez mais nesse dom, que as paróquias e outras instâncias eclesiais estimulem o surgimento desses  grupos,  os  quais,  independentemente  do  nome  que  venham  a  ter,  exercitam  a gratuidade  do  acolhimento.  Nossa  Arquidiocese  possui  já  há  vários  anos  o  Ministério  do Acolhimento.  Seu  serviço  mais  visível  tem  sido  o  das  boas-vindas  antes  da  Missa.  A criatividade de cada local tem se mostrado interessantíssima e o acolhimento, também fora do momento de chegada para a Missa, pode ser um caminho muito fecundo para a superação da violência. Mais fecundo ainda será este caminho se for aliado à ação missionária que vai ao encontro das pessoas lá onde elas estão. Cada pessoa que acolhe e escuta em nome de Jesus Cristo está, ainda que com outras palavras, dizendo a mesma frase do Senhor: “vinde a mim e eu vos aliviarei”.

 

Aprender a perdoar e a se reconciliar

 "Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete”. (Mt 18, 22) 

44.Escutar e deixar desabafar produz o efeito de falar ao coração. E, quando se fala ao coração, se consegue fazer brotar dali as mais significativas atitudes, das quais o perdão é, ao mesmo tempo,  a  mais  difícil  e  a  maior.  Este  aspecto  é  importante  porque,  sem  o  perdão  e  a reconciliação, não existe efetiva superação da violência. Sempre ficará como que uma conta a ser paga, um desejo de vingança e punibilidade, ao qual podemos até chamar de justiça. Na verdade,  porém,  permanecerá  acesa  uma  espécie  de  chama  piloto  da  violência,  prestes  a explodir  quando  lhe  fornecerem  combustível.  É  por  isso  que,  desde  o  Ano  Santo  da Misericórdia,  tenho  me  alegrado  bastante  com  as  Escolas  de  Perdão  e  Reconciliação,  mais conhecidas pela sigla ESPERE. Elas são o trabalho mais conhecido desde aquele Ano Santo, mas  não  são  o  único  caminho  para que  o  perdão  aconteça,  brotando  de  dentro  do  coração. Muitas outras atividades na mesma direção acontecem em vários locais. A todas envio minha bênção  e  meu  desejo  de  que  cresçam,  chegando  às  vítimas  da  violência,  ajudando-as  a superar,  pelo  perdão  e  a  reconciliação,  as  cicatrizes  existenciais  de  tanto  sofrimento.  É indispensável que todas as comunidades tenham grupos com este perfil.


Mediação comunitária

"Apliquemo-nos ao que contribui para a paz ...”. (Rm 14, 19)

45.Também  no  Ano  Santo  da  Misericórdia,  nossa  Arquidiocese  iniciou  outra  experiência  que seguramente deve contribuir para a superação da violência. Refiro-me ao convênio realizado com  o  Tribunal  de  Justiça  para  a  criação  de  alguns  centros  de  mediação  comunitária. Atualmente estão em funcionamento sete centros em várias regiões da cidade. Ali se realiza uma concretização do que tecnicamente se chama de justiça restaurativa. Nela, dito de modo muito  simples,  mais  do  que  os  objetos  dos  conflitos,  o  importante  são  as  pessoas.  Se  há conflitos,  não  se  lesando  os  direitos,  segue-se  a  regra  do  bom  senso  e  da  fraternidade, ajudando as pessoas a compreenderem que não há lesão maior do que a quebra da paz e da fraternidade. 

46.Os centros  de mediação  comunitária  atendem  às  pessoas que vivem  situações  de  conflito e desejam  uma  solução  não  contenciosa.  Buscam  a  paz.  Querem  a  melhor  solução  possível, preservando os valores maiores do relacionamento, da vizinhança, da amizade e da família. As  decisões  possuem  valor  de  sentença  e  são  reconhecidas  pelo  Tribunal  de  Justiça.  Os mediadores  são  pessoas  das  paróquias,  movimentos  e  associações,  que,  após  treinamento  e com contínua supervisão, acolhem, escutam, ajudam a chegar a um consenso. Não há sequer a necessidade de formação superior especializada para ser um mediador comunitário. O serviço é  aberto  a  todas  as  pessoas  sem  qualquer  condição.  Estes  centros  de  mediação  existem  em diversos locais da cidade e também em alguns locais de nossas igrejas. Unimo-nos   a quem acredita  no  caminho  restaurativo  de  concretizar  a  justiça.  Abrimos  nossas  portas  e  nossas instalações motivados pela gratuidade. Peço que este serviço seja divulgado, que os centros de mediação  comunitária  sejam  conhecidos,  que  sua  proposta  seja  valorizada  e  muitos  outros corações generosos se ofereçam para o treinamento e para o serviço de mediador.


Uma caridade secular

“O que fizestes a um desses pequeninos foi a mim que o fizestes!” (Mt 25,40)

47.Somos  conhecidos  por  nossa  atividade  assistencial.  Em  cada  comunidade,  ainda  que  de modos  diferentes,  são  distribuídas  cestas  com  alimentos,  existem  serviços  de  atendimento médico,  orientação  profissional  e  muito  mais.  A  caridade  é  de  fato  nosso  distintivo.  Não fazemos isso, por certo, com outra intenção que não seja a de servir e ajudar. Na maioria das vezes, nem temos condições de contabilizar tudo que fazemos pois o princípio do respeito a quem  recebe  nos  leva  a  não  nos  preocuparmos  tanto  com  números  e  contas.  Se  ajudamos, somos  felizes.  Esta  é  a  dimensão  assistencial,  socorro  mais  imediato  para  as  vítimas  da violência. Numa sociedade que exclui, abandona e larga ao relento, a atitude cristã do socorro imediato é sinal do amor de Deus.

48.Por isso, não podemos abandonar este modo tradicional de concretizar a caridade cristã. Por meio  da  solidariedade  de  pessoas  e  grupos,  um  número  incontável  de  vítimas  da  violenta pobreza  encontra  alimento,  saúde  e  dormida.  Muitos  encontram  também  recuperação  da dependência química, geração de renda e ajuda para construção ou reconstrução de moradia. São, enfim, tantas formas de solidariedade que só me cabe agradecer a Deus e estimular sua continuidade. Por certo, a articulação dos diversos tipos de serviço da caridade imediata em muito poderá ajudar a acolher melhor um número de pessoas ainda maior. Na caridade, não existe competição pois “todos são de Cristo” (cf.  1 Cor 3,6-9). Existe união de forças para melhor servir.

49.Na  verdade,  a  pobreza  é  uma  forma  de  violência.  Ela  acontece  quando  não  se  geram condições  de  acesso  ao  indispensável  à  dignidade  humana.  Que  mundo  é  esse  que  gera famintos,  sem  teto,  migrantes,  refugiados  e  tantas  outras  formas,  cada  vez  mais  agudas  e crescentes de pobreza? Diante dessa realidade, não há como não dizer que a pobreza é uma forma  de  violência!  É  uma  das  formas  mais  degradantes  de  violência  porque  não  tem  a aparência de violência. Muitas das concretizações da pobreza não se mostram como agressões porque  não  se  apresentam,  por  exemplo,  como  lutas,  guerras  ou  assaltos.  Nem  por  isso, entretanto,  deixam  de  ser  violentas.  É  preciso,  assim,  trabalhar  pela  superação  da  pobreza. Fundamentando-se nos ensinamentos do Papa Bento XVI, a Campanha da Fraternidade nos recorda que “não se vence a violência sem atenção aos pobres e sem combate à pobreza. A pobreza encontra-se frequentemente entre os fatores que favorecem ou agravam os conflitos, mesmo  os  conflitos  armados.  Estes  últimos,  por  sua  vez,  alimentam  trágicas  situações  de pobreza... Combater a pobreza é construir a paz”. 11

50.Junto com a pobreza, devo, em consciência, destacar a corrupção como uma forma aguda e por demais degradante da violência. Muitas vezes, a pobreza não é adequadamente enfrentada exatamente por causa da corrupção. Ela deixa incontáveis vítimas por todas as áreas da vida como,  por  exemplo,  a  lastimável  situação  do  atendimento  de  saúde  para  a  população  mais pobre.  Outros  exemplos  podem  ser  acrescentados,  pois  não  faltam  ao  nosso  redor.  A corrupção cega pessoas, retirando delas a capacidade de enxergarem as consequências de seus atos.  E  são  muitas  as  consequências:  humanas  e  humanitárias,  morais  e  sociais,  jurídicas  e religiosas.  Por  isso,  reitero  o  que  nós,  bispos  do  Regional  Leste  1,  afirmamos  em  nossa mensagem ao final da Assembleia do ano passado: “o dinheiro usurpado pela corrupção está manchado  pelo  sangue  e  pelas  lágrimas  das  vítimas  dessa  calamitosa  realidade”  12.  Este sangue clama aos céus (cf. Gn 4,10). Superar a cultura da corrupção é também um modo de superar a violência.


Conscientizar para superar

"Pode acaso um cego guiar outro cego?

Não cairão ambos na cova?” (Lc 6, 39)

51.Além da caridade mais imediata, existe uma outra forma que consiste em ajudar a perceber o contexto  de  violência  que  nos  envolve.  Além  de  cuidarmos  das  consequências,  é  preciso enfrentar as causas, ir até as origens da violência, ajudar a perceber onde, como e porque a violência existe. Desse  fato decorre a importância dos diversos  grupos e  encontros onde se reflita  sobre  a  violência,  com  suas  causas  e  os  caminhos  para  a  sua  superação.  Quando  se toma consciência da realidade, supera-se o medo, o imobilismo é vencido e atitudes começam a ser tomadas, mesmo que pequenas, de início.

52.O  tema  da  paz  necessita,  portanto,  ser  abordado  nos  diversos  espaços  e  momentos  das comunidades, com seus grupos 13. Mais do que apenas indicar a presença da violência, com suas causas e consequências, é indispensável que se anuncie a paz como uma possibilidade concreta. Urge que se faça o discernimento de caminhos concretos para a construção da paz. Reitero  que  podem  ser  ações  iniciais  pequenas,  ações,  porém,  que  levam  a  transformar corações, consciências e realidade. Não podemos ficar só no âmbito da reflexão, da partilha dos problemas, como se bastasse o desabafo e a conversa. Se antes, ao me referir à escuta, destaquei tanto essas duas atitudes, desabafo e conversa, agora insisto que ambas devem levar a ações de construção da paz, ações que permitam a transformação da mentalidade, passando de uma cultura de violência para uma cultura de paz.

53.Nesse  sentido,  destaco  a  importância  das  diversas  pastorais  sociais,  em  nossa  Arquidiocese reunidas num Vicariato a elas dedicado. Destaco os diversos grupos e comissões que atuam na área dos direitos humanos, com especial sensibilidade para os encarcerados, principalmente os mais jovens, que passam por medidas socioeducativas 14. No território de nossa Arquidiocese, encontra-se um conjunto de instituições penais e socioeducativas, exigindo, portanto, presença solidária e restauradora. Estas instituições não podem corresponder à crença de alguns de que tendem  mais  a  escolas  de  criminalidade  do  que  efetivos  caminhos  de  recuperação.  Não  é admissível que alguém seja levado a uma instituição com a proposta de se reencontrar e saia de lá ainda mais marcado pela violência.

54.A Campanha da Fraternidade nos apresenta inúmeras sugestões, algumas das quais colhidas com base na longa prática da Igreja por todo o Brasil. Lembro, por exemplo, a importância de se  fazer  presente  nos  conselhos  paritários  15.  São  espaços  onde  a  sociedade  civil  pode,  em espírito de unidade, trabalhar pela superação da violência e a busca de soluções alicerçadas na paz.  Podem  ajudar  a  ultrapassar  as  propostas  baseadas  no  armamento,  na  punição  e  na vingança.

55.É possível também, e mesmo necessário, que se trabalhe para a construção e aplicação de leis que ajudem na superação da violência. Nosso país, costumamos dizer, é rico em legislação, mas não tanto na concretização dessas leis. São muito os exemplos: desde a Declaração dos Direitos  Humanos,  uma  regra  universal  que  em  2018  está  completando  70  anos  16,  até  leis especificamente  brasileiras  que  visam  à  defesa  das  vítimas  e  a  barrar  posturas  violentas.  A experiência das leis de iniciativa popular, como a Lei da Ficha Limpa, devem nos estimular a continuar  trabalhando  por  novas  leis  que  atendam  ao  anseio  de  paz.  Recordo  ainda  o importante  trabalho  em  prol  da  criação  de  políticas  públicas  que  atinjam  as  causas  da violência e ajudem as vítimas a superar as consequências. Políticas públicas será o tema da Campanha da Fraternidade de 2019, em continuidade com o tema deste ano, portanto.

 

A superação de quem cometeu violência

 “Estive preso e me fostes visitar” (Mt 25,36) 

56.Por isso, apoio tanto nossas pastorais que atuam neste mundo tão complexo e tão desafiador. Rezo  incessantemente  pela  Pastoral  Carcerária  e  pela  Pastoral  dos  Menores  Privados  de Liberdade.  Num  mundo  que  se  preocupa  bem  mais  em  castigar  do  que  em  recuperar,  o trabalho destas pastorais é muito importante para a superação da violência. Medidas centradas no encarceramento revelam uma sociedade que somente quer punir e assustar com a punição. Na verdade, porém, esta atitude em nada contribui para que os índices de violência diminuam, pois, como já insisti tanto, ela quer enfrentar a violência com mais violência. Lembro-me das palavras do Papa  Francisco durante o Jubileu dos Encarcerados: “Onde houver uma pessoa que  errou,  nesse  lugar  se  faz  ainda  mais  presente  a  misericórdia  do  Pai,  para  suscitar arrependimento, perdão, reconciliação e paz" 17. É isso que fazemos em nosso trabalho junto aos que estão privados de liberdade. Nem sempre somos compreendidos. Sofremos acusações e preconceito.  Importa, todavia, que permaneçamos firmes no caminho da misericórdia  (cf. Mt 5,101 Cor 4,12; 2 Cor 4,9), pois assim disse Jesus: “estive preso e me fostes visitar” (cf. Mt 25,36). A Campanha da Fraternidade nos ajud

Fonte: Redação