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Vocação e Amizade

em 03/07/2016 | 00h00min

Vocação e Amizade

A vida comunitária e os vínculos da caridade fraterna já nos despertam a consciência do fato real de sermos irmãos. Sentimos assim a necessidade de celebrar a vida dos que partilham conosco o viver vocacional, e que participam do grande mistério da comunhão e do amor de Deus. A caridade fraterna já nos faz pertencer um ao outro pela graça do carisma em nossas vidas. Esse estar junto é importante e necessário mais do que nunca, por causa da comunhão uns com os outros para a qual todos fomos criados, vindo a ser também o antídoto da solidão, do egoísmo e do individualismo que impera hoje entre as pessoas. “Na situação do homem moderno, o que é trágico, o que constitui o seu isolamento é a falta de diálogo, de comunicação espiritual com o outro” (Ignace Lepp). O homem está cada vez mais necessitado de viver junto. No entanto, não basta estar junto de qualquer forma, é preciso estar junto com um viver de qualidade.

“Quem escolhe a vida consagrada decide viver com outros, seus semelhantes, numa comunidade. Como consequência, crescer na vida espiritual implica também crescer no modo de estar com os outros e apurar sempre mais o próprio estilo de comunicação” (Giuseppe Colombero).

A caridade fraterna nos faz comprometidos com o outro e portamos por esses laços uma dívida ao nosso irmão, em acolhê-lo e amá-lo na sua diferença e na sua maneira particular de ser. A caridade de Cristo nos fez um com ele e por isso já não carregamos mais o peso de termos o outro como inimigo. Nosso direito de progenitura não precisa mais ser vendido como fez Esaú com seu irmão Jacó (Cf: Gn 25,29-34), para sermos saciados com qualquer coisa, pois o corpo e o sangue de Cristo nos inseriram na comunhão do amor da Trindade. Cristo é o referencial de todo amor humano e não necessitamos mendigar o amor do mundo baseado unicamente no prazer. Cristo nos redimiu de todo pecado e também redimiu o amor que escravo estava dos prazeres carnais. Nossos irmãos e amigos participam desse amor redimido e dessa novidade da caridade. É a caridade fraterna que nos permite viver o dom da vida comunitária e consagrada. E aí, essa caridade fraterna guiada pela Providência de Deus nos faz perceber também aqueles com quem queremos partilhar mais de perto as nossas dores e alegrias, os nossos segredos, a vida de Deus que vai moldando a nossa. A esses nós chamamos de amigos, amados amigos!

Cristo nos mostrou que é uma necessidade do coração do homem ter amigos. A amizade nos recorda e renova o sentido da vida em Deus e do amor aos homens: amar até o extremo! Dar a vida por eles completamente. “Assim como o Pai me amou, também eu vos amei. Permanecei em meu amor…Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo15,9.13). Paul Hinnebusch completa em seu livro intitulado, O Ministério da Amizade: “Jesus mostrou-se verdadeiramente nosso amigo, dando sua vida por nós na cruz”. Sabemos que Cristo mostrou-se também nosso amigo revelando-nos todos os segredos do seu coração. “Eu vos chamo amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer” (Jo15,15). Então é-nos dado, da parte de Deus, o dom da amizade, “a vocação à amizade” como escreveram alguns filósofos e como confirma aqueles que a vivem traduzida nas páginas de tantos escritores contemporâneos.

A amizade é um dom de Deus dado a quem ele quer para uma missão na vida dos amigos e na vida dos homens de boa vontade. Diríamos ainda que a amizade é um dom e exerce uma missão particular na vida comunitária. A necessidade da amizade de que nos mostrou Jesus recebe uma particular observação quando se trata da vida comunitária. Ninguém procuraria uma comunidade religiosa se não tivesse certeza de encontrar, entre as suas paredes e na convivência daqueles que dentro delas habitam, pelo menos aquela ternura que poderia se encontrar na família. A vida comunitária comporta uma escolha diária e com muitas renúncias, inclusive no que diz respeito à vida fraterna. Não somos chamados a ser amigos de todos, pois é impossível, mas somos chamados a acolhermos a todos na caridade de Cristo.

Como disse nosso tão amado Papa João Paulo II: “Amar em si é uma escola; e a vida comunitária é esse lugar onde melhor se exercita esse aprende a amar”. Giuseppe Colombero diz isso com outras palavras de forma brilhante e profunda: “Não amar e não ser amado é sentir-se ninguém. Sentimos então a mais dolorosa das frustrações: a inutilidade da própria vida. Amor é calor e cor, aquilo que dá um rosto e um sentido às coisas e aos dias, mas é preciso querer esse amor, e querê-lo juntos, um pelo outro, e não apenas dizê-lo ou dissimulá-lo. É preciso viver em comunidade conforme o seu verdadeiro espírito de koinonya”.

Para mim tem sido uma grande novidade a convivência com alguns importantes amigos e, posteriormente, a descoberta da amizade, desse fazer parte do coração do amigo. A amizade nunca se faz da noite para o dia, é preciso disposições concretas para trilhar um caminho de acolhida, conhecimento do outro e de si mesmo, capacidade de sair de si para deixarmos que o outro se aproxime e queira livremente partilhar da sua vida, das suas fraquezas, limitações, das alegrias e dos dons com que o Senhor cumulou cada vida. Penso e sinto que isso vem acontecendo conosco, amigo, quando aos poucos vamos participando da vida um do outro nas coisas mais simples, mesmo que tantas vezes seja difícil conseguir um tempo pra sentarmos e conversarmos. A dinâmica da vida comunitária nos coloca diante de desafios que precisam ser superados. Amar implica decisão e coragem de não se deixar levar por tantos obstáculos. Nem todos estão disponíveis para a construção dos laços de amizade, e muitas são as causas que levam a isso que aqui não me compete descrevê-las.

Mesmo com as impossibilidades e com todos os desafios que comporta o dom da amizade, Deus vai nos dando a graça da escolha gratuita e a criatividade de darmos provas de amor um ao outro simplesmente sendo nós mesmos. Aprende-se muito com o amigo, mesmo que esteja distante ou próximo. A prende-se muito com o amigo, exatamente se deixando conduzir e temperar a amizade pelo amor a Deus, a discrição, a alegria, na transparência em ser aquilo que de fato é o nosso coração. O amigo que cultiva os relacionamentos e a arte de ter aprendido que dentro da vida comunitária não nos serve escondermos o que constitui o nosso potencial interior, a nossa verdade, aquilo que Deus mesmo realizou nas nossas vidas. Somos um mistério fascinante mesmo que tenhamos de admitir que a limitação e a fragilidade nos marquem. A amizade acontece mesmo quando é preciso tocar naquele mistério de graças como de misérias presentes no coração de cada um de nós. “Característica da amizade é a certeza de encontrar o imutável no mutável” (Giuseppe Colombero). Recordo-me de uma expressão que tomei conhecimento já há alguns anos: “Quero um amigo com o qual eu tenha, na sua presença, a liberdade de sentir-me fraco, ser diante dele aquilo que realmente eu sou” (Padre João Wilkes,CCSh).

Quando nos deparamos com as fragilidades dos nossos irmãos e amigos, costumamos considerar como um desafio, mas nunca ao ponto que nos desestimule. Acho que não é possível explicar o porquê que os irmãos nos escolhem como amigos, pois é Deus mesmo cuidando, protegendo, nos dando a sua misericórdia e nos convidando à santidade. Quando procuramos a amizade não a encontramos, porque a amizade verdadeira não é objeto de procura. Acredito que é Deus mesmo que cuida de despertar em nós todo o potencial humano e, sua graça utiliza-se das nossas capacidades humanas, tais como: a percepção, a intuição, o esvaziamento, humildade e a disposição para sairmos de nós mesmos para acolhermos o dom da vida do nosso irmão. Quando caçamos a amizade ela nos escorre pelos dedos, não a alcançamos porque ela se encontra primeiramente dentro de nós. Reconhecemos, essencialmente, no mais profundo do nosso coração aquela identidade que comunga com quem começa a viver conosco o período de conquista da amizade.

Não é possível que a amizade seja autêntica e transparente quando não deixamos que o próprio coração tenha sentido a necessidade de reconhecer o outro como alguém que parece trazer consigo aquelas disposições necessárias para conosco construir uma amizade. É pobreza de coração e de personalidade chamar alguém de amigo quando ainda de fato não o é. Quem acha que amizade é ter pressa em dizer que “somos amigos” e não compreende que ela é um exercício que exige escolha, decisão de amar, cultivo generoso, paciência, fidelidade e transparência, não está mesmo preparado para viver a amizade que atinge a profundidade e a maturidade. As pessoas superficiais costumam evidenciar suas amizades, não para celebrá-las, mas para fugir da sensação de angústia e dor de não terem amigos de verdade, amigos que foram conquistados, cultivados e inseridos no nosso ser mais profundo pelo próprio amor de Deus. Quem não trilha esse caminho constrói amizades vulgares e medíocres, interesseiras e incapazes de permanecerem quando chega o tempo da adversidade. Nessa condição, o amigo é amigo enquanto dele sempre consigo extrair, aprender ou ganhar algo que satisfaça as minhas próprias carências.

Temos necessidades de amizades verdadeiras que promovam a felicidade mais esplêndida e, pela partilha e comunicação, amenize a adversidade, a dor e a solidão que tantas vezes nos pesa na alma, próprios do caminho da purificação e do amadurecimento da liberdade interior. Descrevo aqui o que o filósofo Cícero escreveu no seu célebre tratado sobre a amizade: “É possível realmente viver a vida sem conhecer a felicidade de encontrar num amigo os mesmos sentimentos? Que haverá de mais doce que poder falar a alguém como falarias a ti mesmo?… Ora, a amizade encerra em si inumeráveis utilidades. Para onde quer que te voltes, lá está ela a teu alcance. Por isso nem o fogo nem a água, como se diz, são usados em tantos lugares quanto à amizade. Eis, pois, que a amizade apresenta vantagens muito numerosas e importantíssimas; mas a que a todas ultrapassa é a de inspirar uma doce confiança no futuro sem permitir que os ânimos desfaleçam ou sucumbam. Assim, quem contempla um amigo verdadeiro contempla como que uma imagem de si mesmo. Eis porque os ausentes se fazem presentes, os pobres se tornam ricos, os fracos ganham robustez e, o que é mais difícil de dizer, os mortos recobram vida: de tanto inspirarem estima, recordação e saudade aos seus amigos. Assim, uns parecem ter encontrado felicidade na morte, outros vivem uma vida digna de louvor”.

Alegro-me por ter a liberdade e a segurança de hoje poder ter amigos e amigas, embora compreendendo que a amizade é sempre um caminho de cultivo, doação e provas de amor, ainda que essa prova maior de amor seja a oração. As Sagradas Escrituras nos apresentam amizades que começaram e logo parecem ter atingido a maturidade. Um exemplo concreto e tão fecundo é a experiência da amizade que viveu Jônatan e David, como nos narra o Primeiro livro de Samuel: “Assim que David terminou de falar com Saul, Jônatan se apegou a David e começou a amá-lo tanto quanto a si mesmo” (I Sm 18,1-4). Assim também é possível acreditarmos que tantas amizades chegam a uma comunhão profunda de maneira misteriosamente rápida, e não podemos julgar que todas essas amizades sejam interesseiras ou movidas por sentimentos contrários aos que correspondem com os princípios do amor amizade.

Quando começamos a nos relacionar a pretensão do nosso coração não deve ser egoísta, mas deixar que Deus conduza na sua graça o relacionamento, caminhar com o dom da vida do outro na tranquilidade. É nisso que consiste a sabedoria de viver bem o próprio amor fraterno que já nos fez irmãos e participantes da comunhão e do mistério do mesmo Carisma. Aos poucos se vai percebendo que Deus, com a sua providência, vai cuidando de nos aproximarmos mais e sentirmos a necessidade de acolhermos o dom da amizade que desabrocha. Verdadeiramente, bem jovem pode ser uma amizade ou mesmo que se esteja começando agora a trilhar um longo caminho de surpresas, novidades, desafios e purificações, no entanto, a graça de Deus nos é dada para cada circunstância. A amizade não isenta-nos da tentação de sermos guiados pelas nossas vontades e feridas. Este é um risco e um desafio que todos os amigos passam e em todas as fases da amizade. A amizade comporta a necessidade dos amigos estarem lúcidos e com o coração em Deus, seus sentimentos e suas carências afetivas.

O ouro da caridade passará pela prova, como  escreve Maria Emmir no livro “Fio de Ouro”. Ela diz: “O ouro, assim, é esse amor de amizade, que só existe quando é vivido e que é purificado no relacionamento concreto e não em conceitos abstratos. Não existe amor sem riscos. Não existe amizade sem risco. Não existe fé sem riscos, não existe confiança sem riscos”. Ao ver Emmir falar que “não há uma confiança sem riscos” me lembro das palavras da homilia do Cardeal Ratzinger na missa de início pelo conclave, quando cita as duas definições de amizade deixadas por Cristo: “Não há segredos entre amigos: Cristo nos diz tudo o que escuta do Pai; Dá-nos sua plena confiança e, com a confiança também o conhecimento”. A confiança construída sob a caridade é essa a maior segurança que temos no relacionamento da amizade; essa amizade é assim um bem nela mesmo por causa do reflexo do amor de Deus.

Não seria possível vivermos todos os riscos que comportam a amizade, sem de fato a vivermos numa dimensão vocacional na nossa vida. É preciso ter “paixão” pelas belezas que Deus colocou para a nossa felicidade. Infelizmente, a trajetória do homem ao longo dos últimos séculos o deixou escravo de si mesmo e dependente do que ele mesmo criou para tornar a vida mais eficiente e qualitativa. Os relacionamentos são os mais atingidos por essa ilusão do homem em “ter, possuir e poder”, de forma que sua vida se asfixia na solidão, na depressão e no isolamento mais cruel que ele possa viver. Como explicar os altos índices de suicídio e loucuras nos países de primeiro mundo? Como explicar o índice crescente da violência no meio da nossa juventude? Como explicar certa indiferença nas causas sociais, o esvaziamento das igrejas, o desencanto pela arte e pela vida social e comunitária? Se falarmos especificamente da vida consagrada, evidenciaremos muitas questões que hoje são preocupantes para aqueles que trabalham a formação na vida religiosa e para todos nós que vivemos a vida fraterna na Comunidade ou na Congregação ou Seminário.

Os homens estão isolados embora estejam juntos, por isso agonizam. Querem alguém que os escute ao menos. Gritam no seu silêncio que precisam de irmãos e de amigos, caso contrário, morrerão. Descobrem a cada dia que suas escolhas excluíram os relacionamentos e por isso correm os riscos de perder o mais belo de vida: viver para o outro! Estar com o outro; Eu presente nele; Ele presente em mim; Existir um para o outro e viver a vocação sublime da Caridade fraterna e da amizade para as quais nos criou Trindade. Felizes aqueles que têm amigos! Esta é uma das mais evidentes verdades da vida humana. É tão necessária a amizade como necessário é o ar para respirar! Relacionar-se é uma necessidade vital e uma arte que se aprende. Uma amizade autêntica nos abre a outras e nos capacita a superar obstáculos da vida comunitária. Uma amizade fecunda, livre, aberta aos outros, transparente, cultivada no serviço, na verdade e nos sentimentos de Cristo transforma as nossas vidas e a daqueles que estão ao nosso redor. Transborda na vida comunitária, onde quer que estejamos e gera alegria, convivência, harmonia, santidade. É esse o caminho e os frutos da vocação da amizade em nossas vidas. A vocação é sempre uma resposta livre ao chamado que alguém nos faz. A vida consagrada tem esse “mistério evidente.” Não seguimos uma coisa ou uma ideia, mas uma Pessoa: Jesus Cristo. Temos para com ele uma amizade verdadeira, transparente e livre. É Senhor e amigo ao mesmo tempo. Cristo é o referencial de todo amor humano e divino. Não há amizade segura e vocacionada à eternidade se não tem como fundamento Aquele que sublimou a nossa humanidade e nos deu a possibilidade nova de vivermos relacionamentos novos, santos e duradouros.

Isso não significa dizer que estamos prontos para amizade humana, porque na verdade não estamos! Tudo é graça de Deus! Não somos nós que sustentamos a amizade. Ela é primeiramente dom de Deus. Uma semente que é plantada no coração de dois irmãos para que cresça com a descoberta, a escolha, o cultivo e a decisão de amar o outro por ele mesmo, embora sejam eles tão diferentes. Quando vamos conhecendo o amigo, tão logo percebemos nossas semelhanças e aquilo que é comum nos desejos e na maneira de conceber a vida. As diferenças não anulam amizade e nem são obstáculos para que ela se desenvolva em toda a sua potencialidade.

O amor será sempre a força e o fundamento, o sentido e a vocação maior da amizade. Mas não esqueçamos que é Deus quem “rega” a semente e a faz crescer com a ajuda da nossa frágil colaboração, mas quando livre e na sua graça, gera muitos frutos que permanecem além do tempo e das fronteiras.

Fonte: Comunidade Católica Shalom

Fonte: Redação