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A Quem Agradecer

em 06/02/2016 | 00h00min

A Quem AgradecerO dia foi de turismo com amigos de fora. E não podia faltar a indefectível subida ao Pão de Açúcar. Dia lindo, de sol e muito calor, cheio de gente na fila para o bondinho. Pagamos ao taxista e descemos rápido para pegar menos fila... e eis que ao chegar no topo meu marido descobre haver esquecido no táxi uma pasta com livros, óculos e outros objetos.
Ao descer, perguntamos se alguém havia entregue na administração uma pasta, mas diante da resposta negativa fomos comer alguma coisa. Ao chegar em casa, ali estava a pasta. O taxista que nos buscou na porta de casa percebeu o esquecimento, lembrou do endereço e a devolveu. Para tal certamente teve que sair do seu caminho, perder corridas, desviar, chegar mais tarde em casa...
Anônimo, desconhecido, não temos como agradecer-lhe. Como se chama? Onde mora? Não sabemos. Sabemos, no entanto – melhor dito, experimentamos – que ele fez nosso final de ano mais bonito, instaurando entre nós o reino da gratuidade. No tempo de comercialização de tudo, do individualismo exacerbado, de tantas desgraças, eis que a graça bate à nossa porta de forma discreta, amável, sob a forma da gratuidade e suscitando como única resposta possível a ação de graças.
A gratuidade anda escassa em nosso meio. Acreditamos que tudo tem sempre que dar resultado. Para ganhar um certificado, fazemos um curso; se nos pagarem, fazemos um serviço extra; se pessoas consideradas importantes estão presentes, concordamos em fazer a palestra. Vivemos sempre perseguindo resultados e descartando o verdadeiro sentido das coisas.
E isso nos afasta de maneira irremissível da economia da fé, de Deus e da salvação. Se todo verdadeiro encontro é feito de gratuidade, o encontro com Deus é pura gratuidade, como também tudo o que ele dá. Se preciso, peço; se recebo, agradeço; se estou alegre, festejo; se estou triste, choro. Não preciso dar nada em troca, só preciso querer viver este momento. Quero rezar, então rezo; quero falar, então falo; quero calar, então calo. Para o encontro com Deus não preciso pagar passagem, não preciso aguardar na fila, não preciso me enfeitar; só preciso me abrir a Ele. Então entenderei a gratuidade de Deus. A palavra cobrança não existe em seu dicionário. Deus vai te cobrar é um termo humano e não divino. Deus chama, atrai, oferece e respeita a vontade de todos. A salvação é de graça, não é comprada, nem conquistada. Assim, tudo que vem de Deus também é de graça. Deus não nos deve nada e não devemos nada a Ele, nem mesmo nossa vida, porque ela nos foi dada de graça, ela é uma dádiva e não um empréstimo.
Essa gratuidade que rege a vida de fé igualmente inspira gestos gratuitos e desinteressados. Assim como o gesto do taxista, que saiu de seus cuidados e de seu cotidiano para devolver um objeto que faria falta ao dono. Nem havia nada de valor dentro daquela pasta. Mas sim livros lidos com carinho, óculos de estimação, recortes de jornal catalogados... coisas não importantes nem necessárias, talvez, mas enormemente queridas por quem as juntou e as carregou naquela pasta finalmente resgatada pela gratuidade.
A gratuidade é filha do desejo e não da necessidade. Brota da liberdade e não do cálculo e da cobrança. Não exige retorno, reconhecimento, gratidão explícita. Pode até apreciar essas atitudes quando acontecem, mas não deixará de realizar aquilo que sente que fará feliz o outro por não obter retorno afetivo ou psicológico.
Filha da ética, é esposa da mística. Não pode produzir-se a si mesma, fabricar-se, inventar-se. Recebe-se e agradece, louva pelo dom e se dá também. Seu ambiente é o afeto desabrochado ou desabrochante e seus frutos são a alegria e a ação de graças. Expressa-se em gestos simples e cotidianos, sem ser habituada às estridências de sucessos e êxitos ribombantes e reconhecíveis a olho nu.
Por isso desconcerta, espanta, deixa perplexo. Diante da gratuidade, do gesto gratuito e inesperado o sentimento é de surpresa. Surpresa por contemplar algo tão inabitual, tão em desuso em nossa vida de cada dia A gratuidade não é retributiva nem simétrica. Mas restaurativa e configurada segundo a assimetria do espontâneo e do afetivo. Assim são suas filhas: a gentileza, a bondade, a amabilidade, a consideração e o respeito.
Diante de toda essa revelação resultante de uma pasta perdida e reencontrada, a quem agradecer? Ao meu irmão taxista, certamente, do qual não sei sequer o nome. Mas sobretudo Àquele que é a fonte da Graça que dá origem a essa gratuidade e a tantas outras. Místicos de várias escolas, na maturidade de sua vida espiritual, chegaram à conclusão convergente de que “tudo é graça”. Ora, se tudo é graça, tudo só pode ser “ação de graças”. Agradeçamos pois. Quanto mais não seja porque começamos um novo ano. Há muitos e muitas que não chegaram a fazê-lo. Agradecer essa graciosa responsabilidade de estar vivos aqui e agora é o que de melhor podemos fazer, sem dúvida.
(Publicado em 6/1/2016 por: Mª Clara Bingermer – Amaivos Instituto)

Fonte: Redação